Os filhos do "uno a uno"
No auge da crise econômica de 2001 na Argentina, um grupo de fotógrafos acabou se encontrando em meio aos protestos nas ruas de Buenos Aires. Crias de um período economicamente difícil e politicamente fértil, Sebastian Hacher, Nicolas Pousthomis e Gisela Volà registraram o princípio da crise argentina e acabaram por criar a Sub – Cooperativa de fotógrafos. Hoje, somaram-se à equipe Gabriela Mitidieri, Nancy Lucero e Olmo Calvo Rodriguez. Juntos, eles constróem uma das raras iniciativas em cooperação e fotografia da América Latina.
Clarissa Pont - Agência Carta Maior
Em meados de dezembro, as ruas de Buenos Aires começaram a encher de gente munida de paus e panelas. Em 2001, depois do delírio neoliberal de dois governos de Carlos Menem nos quais passou a valer o uno a uno (por mágica, o peso argentino estava indexado à cotação do dólar), a Argentina inteira caía na real e enfrentava uma crise sem precedentes. As fábricas fecharam as portas um pouco antes do natal e deviam meses de salários aos empregados. Hotéis entregavam cinco dólares na mão de cada camareira e realocavam hóspedes pela vizinhança antes de pedir concordata. No dia 19 de dezembro, as manifestações populares e panelaços desaguaram na renúncia do presidente Fernando De la Rúa. No dia seguinte, acredita-se que pelo menos 30 pessoas foram mortas em confrontos com a polícia. No meio de gás lacrimogêneo, um grupo de fotógrafos acabou se encontrando. Carta Maior conversou com Gisela Volá em Buenos Aires, no casarão antigo que abriga a Sub – Cooperativa de fotógrafos.
Crias de um período economicamente difícil e politicamente fértil, Sebastian Hacher, Nicolas Pousthomis e Gisela Volà registraram o princípio da crise argentina e acabaram por criar a Sub – Cooperativa de fotógrafos. Hoje, somaram-se à equipe Gabriela Mitidieri, Nancy Lucero e Olmo Calvo Rodriguez. Juntos, eles constróem uma das raras iniciativas em cooperação e fotografia da América Latina convidada a participar da mostra paralela de coletivos no Visa Pour L´Image. “Com toda questão social que envolveu 2001, nos atravessou a todos um sentimento de que deveríamos fazer algo e que seria gente da nossa geração que registraria aquele momento histórico”, resume Gisela. Naquele dezembro de 2001 quando Sebastian com uma caneta na mão, Nicolas de câmera analógica em punho e Gicela com uma filmadora encontraram-se nas ruas, geraram um material forte, todo em preto e branco, com uma força bem mais artística que jornalística. “Até porque havia um quê teatral no que se passava na rua naquele momento”, percebe Gicela.
Hoje, apesar de flertarem ainda com texto e vídeo, todos dentro da Sub trabalham com fotografia. “Durante a crise, vivíamos exatamente o auge da internet na Argentina. Mesmo assim, não sabíamos onde publicar aquele primeiro material. O Sebastian tocava o Indymedia e foi ali onde começamos a divulgar nosso trabalho. Escaneamos as fotos em p&b e divulgamos para o mundo. A partir daí, ninguém mais voltou ao trabalho como antes”, relembra. Os encontros com outros filhos do uno a uno aconteciam em todo canto: nas assembléias cidadãs, na luta das fábricas recuperadas, nas ruas. Cada qual reerguendo as próprias vidas e iniciando a tarefa de reconstruir a economia de todo país. Bem por isso, a gestão da Sub tem muito a ver com o que a Argentina passou entre 2001 e 2003.
A partir dos incontáveis registros de trabalhadores ocupando e reativando fábricas, o cooperativismo pareceu a única forma de elaboração do trabalho naquele momento. “Armamos uma cooperativa de fotógrafos, como os metalúrgicos nas fábricas que fotografávamos”.É assim ainda hoje. Na Sub, tudo que cada um ganha vai para um fundo comum, de onde se repartem salários iguais. “Instauramos uma dinâmica de trabalho onde não somos apenas fotógrafos, somos humanos que nos interessamos pelo outros”, diz Gicela. Segundo ela, a Sub funciona baseada em confiança e militância. Os fotógrafos da Sub alimentam um sem número de publicações, até porque o mercado editorial na Argentina é amplo. Desde Miradas al Sur, um jornal alinhado ao governo de Cristina Kirschner, até uma revista de cultura canábica, passando por revistas de turismo e a revista dominical do Clarín. Em 2005, Cumbia reuniu o trabalho do coletivo em livro.
O próximo deve sair em 2010. Puerto Quilombo soma projetos e apresenta um lugar fictício, localizado na América Latina, que reúne todas as pessoas que a equipe conheceu e registrarou. Uma grande mistura de cultura boliviana, argentina, cubana, brasileira e de pessoas que, de verdade, parecem não ter lugar no mundo. “A fotografia é uma profissão um pouco individualista: é tu com tua câmera e acabou. Só se torna público, quando tu mostras as fotos. Nós vivemos a fotografia de forma muito mais participativa tanto entre nós, quanto nos locais onde chegamos. Pensamos os temas coletivamente, trabalhos em coletivo. Daí surgiu a idéia de passar a assinar os trabalhos da mesma forma. Não assinamos com o nome do autor. Algumas revistas exigem que publiquemos o crédito, mas Cumbia, por exemplo, é um livro que todos assinamos juntos”, conta. Foi em 2004 que a cooperativa começou a caminhar com as próprias pernas. Antes disso, além de trabalhar no coletivo, cada um seguia com projetos próprios e empregos formais.“Foi mais ou menos neste período que vimos que a Argentina tinha nos cansado um pouco, estávamos fartos de registrar o processo pós crise do país e passamos a desenvolver temas próprios”, avalia. As câmeras da Sub voltaram-se para um país vizinho: a Bolívia. Dos desmandos de Sánchez de Lozada à eleição de Evo Morales, os fotógrafos da Sub estiveram no país em viagens que aconteciam a cada seis meses. “A Bolívia foi o nosso primeiro contexto em profundidade, depois de Argentina. Depois fomos ao Brasil acompanhar a primeira posse do Lula e circulamos pelo país”. Em miradas por toda a América Latina, a Sub criava uma identidade. E depois veio Cuba e o material sobre artistas e liberdade de expressão, os despejados pela soja no Paraguai, o plebiscito de Santa Cruz na Bolívia...Destes, o registro do assentamento 13 de Mayo em Itapuá (Paraguai) é talvez o material de maior impacto. Produzido durante quinze dias por Olmo Calvo Rodriguez e Sebastian Hacher, com luzes de estúdio em meio a um cenário onde um punhado de famílias tenta sobreviver e manter cultivos tradicionais, o trabalho é uma bandeira contra o aumento desenfreado da soja pelo continente.
A comunidade local foi desalojada por empresários da soja por 17 vezes nos últimos seis anos. Em cada desapropriação, participam cerca de 100 policiais e guardas civis. O primeiro que fazem é queimar as casas e cobrir com terra os poços artesianos. Na última vez, foram 37 casas queimadas. Os dois fotógrafos contam que apresentaram o material de 17 desalojos y ninguna flor para diversas publicações. Ninguém quis publicar.
Em agosto, as fotos foram selecionadas a partir da curadoria da Biblioteca Nacional argentina para uma exposição em Buenos Aires. “Estamos invadidos de imagens por todos os lados, mas há um monte de coisas que não estão visíveis. A nós, interessa buscar o invisível e, para isso, necessitamos tempo e entrega. E foi uma loucura porque começamos há seis anos atrás ganhando o que seria a metade de um salário mínimo e hoje estamos gerando seis salários por mês”, resume Gicela e, no final, escolhe as palavras para resumir a Sub: “há um montão de coletivos de fotografia, mas nós somos como uma banda de rock com câmeras”.
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