Extrato da Carta Encíclica "CARITAS IN VERITATE" do Papa Benedicto XVI
38. O meu antecessor João Paulo II sublinhara esta problemática, quando, na Centesimus annus, destacou a necessidade de um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil[92]. Ele tinha identificado na sociedade civil o âmbito mais apropriado para uma economia da gratuidade e da fraternidade, mas sem pretender negá-la nos outros dois âmbitos. Hoje, podemos dizer que a vida económica deve ser entendida como uma realidade com várias dimensões: em todas deve estar presente, embora em medida diversa e com modalidades específicas, o aspecto da reciprocidade fraterna. Na época da globalização, a actividade económica não pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bem comum em seus diversos sujeitos e actores. Trata-se, em última análise, de uma forma concreta e profunda de democracia económica. A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos[93] e, por conseguinte, não pode ser delegada só ao Estado. Se, no passado, era possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça. Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar, livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recíproco confronto no mercado, pode-se esperar uma espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e, consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo.
39. Na Populorum progressio, Paulo VI pedia que se configurasse um modelo de economia de mercado capaz de incluir, pelo menos intencionalmente, todos os povos e não apenas aqueles adequadamente habilitados. Solicitava que nos empenhássemos na promoção de um mundo mais humano para todos, um mundo no qual « todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros »[94]. Estendia assim ao plano universal as mesmas instâncias e aspirações contidas na Rerum novarum, escrita quando pela primeira vez, em consequência da revolução industrial, se afirmou a ideia — seguramente avançada para aquele tempo — de que a ordem civil, para subsistir, tinha necessidade também da intervenção distributiva do Estado. Hoje esta visão, além de ser posta em crise pelos processos de abertura dos mercados e das sociedades, revela-se incompleta para satisfazer as exigências duma economia plenamente humana. Aquilo que a doutrina social da Igreja, partindo da sua visão do homem e da sociedade, sempre defendeu, é hoje requerido também pelas dinâmicas características da globalização.
Quando a lógica do mercado e a do Estado se põem de acordo entre si para continuar no monopólio dos respectivos âmbitos de influência, com o passar do tempo definha a solidariedade nas relações entre os cidadãos, a participação e a adesão, o serviço gratuito, que são realidades diversas do « dar para ter », próprio da lógica da transacção, e do « dar por dever », próprio da lógica dos comportamentos públicos impostos por lei pelo Estado. A vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se actue não só sobre a melhoria das transacções fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de actividade económica caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão. O binómio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas econômicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco
38. O meu antecessor João Paulo II sublinhara esta problemática, quando, na Centesimus annus, destacou a necessidade de um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil[92]. Ele tinha identificado na sociedade civil o âmbito mais apropriado para uma economia da gratuidade e da fraternidade, mas sem pretender negá-la nos outros dois âmbitos. Hoje, podemos dizer que a vida económica deve ser entendida como uma realidade com várias dimensões: em todas deve estar presente, embora em medida diversa e com modalidades específicas, o aspecto da reciprocidade fraterna. Na época da globalização, a actividade económica não pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bem comum em seus diversos sujeitos e actores. Trata-se, em última análise, de uma forma concreta e profunda de democracia económica. A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos[93] e, por conseguinte, não pode ser delegada só ao Estado. Se, no passado, era possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça. Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar, livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recíproco confronto no mercado, pode-se esperar uma espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e, consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo.
39. Na Populorum progressio, Paulo VI pedia que se configurasse um modelo de economia de mercado capaz de incluir, pelo menos intencionalmente, todos os povos e não apenas aqueles adequadamente habilitados. Solicitava que nos empenhássemos na promoção de um mundo mais humano para todos, um mundo no qual « todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros »[94]. Estendia assim ao plano universal as mesmas instâncias e aspirações contidas na Rerum novarum, escrita quando pela primeira vez, em consequência da revolução industrial, se afirmou a ideia — seguramente avançada para aquele tempo — de que a ordem civil, para subsistir, tinha necessidade também da intervenção distributiva do Estado. Hoje esta visão, além de ser posta em crise pelos processos de abertura dos mercados e das sociedades, revela-se incompleta para satisfazer as exigências duma economia plenamente humana. Aquilo que a doutrina social da Igreja, partindo da sua visão do homem e da sociedade, sempre defendeu, é hoje requerido também pelas dinâmicas características da globalização.
Quando a lógica do mercado e a do Estado se põem de acordo entre si para continuar no monopólio dos respectivos âmbitos de influência, com o passar do tempo definha a solidariedade nas relações entre os cidadãos, a participação e a adesão, o serviço gratuito, que são realidades diversas do « dar para ter », próprio da lógica da transacção, e do « dar por dever », próprio da lógica dos comportamentos públicos impostos por lei pelo Estado. A vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se actue não só sobre a melhoria das transacções fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de actividade económica caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão. O binómio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas econômicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco
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