Erika Campelo
de Paris
Estudantes protestam com cartazes do sindicato de professores (IUFM) |
As universidades públicas francesas, um dos símbolos do país, estão paralisadas há três meses. Da Sorbonne, a mais prestigiosa, à Nanterre, considerada a mais à esquerda, os professores e estudantes das 83 universidades se mobilizaram para denunciar uma reforma do governo que seria, segundo eles, uma privatização do sistema. Com o final das férias escolares da primavera, algumas universidades retomaram as aulas semana passada. Mas a maioria continua paralisada.
A crise começou em janeiro, com a publicação do decreto de lei que altera o estatuto dos 57 mil professores universitários e dos laboratórios de pesquisa. "A França precisa ganhar a batalha da inteligência. A transformação do nosso sistema de pesquisa é necessária para sairmos da infantilidade, que paralisa a criatividade e a inovação", declarou o presidente Nicolas Sarkozy.
As universidades francesas não dispõem de nenhuma autonomia administrativa nem financeira. "Elas devem ficar mais atraentes e eficientes. Um universitário inglês produz 30% a mais de artigos que um universitário francês com o mesmo orçamento para pesquisa", argumenta uma assessora da ministra do ensino superior Valérie Pécresse, que prefere não ser identificada.
Novas regras
A principal mudança é no funcionamento administrativo. Até agora, o poder era dividido entre três conselhos: administrativo, científico, e da vida universitária. Com a reforma, tudo será concentrado entre o reitor e o conselho administrativo, que poderão nomear o corpo docente e administrativo e ainda criar cursos. O reitor poderá decidir sozinho sobre a carreira de cada professor, avaliando e distribuindo bônus financeiro por mérito.
"Com esse novo sistema, estamos criando uma forma de clientelismo acadêmico. Tudo vai depender da boa vontade do reitor: as contratações, a evolução de carreira", lamenta Thamy Ayouch, professor de Psicologia na universidade Lille 3. A assessora da ministra descarta o argumento: "o objetivo é que haja uma relação de igual para igual dentro das universidades e que todas as decisões não venham do poder central".
Outra mudança refere-se à autonomia das universidades. Até agora, o Estado financia 75% do total dos gastos das instituições. Com a reforma, todas terão direito de receber até 100% de seus recursos da iniciativa privada. “O governo fala de autonomia, mas é o contrário que vai se passar com essa nova lei”, diz o professor de Psicologia. “A Microsoft terá interesse em financiar estudo na área de informática, mas não um trabalho sobre a poesia medieval. Todas as pesquisas não lucrativas desaparecerão. Isso afeta principalmente a área de ciências humanas", afirma Ayouch.
Para o governo, "a França é o único país europeu onde as universidades ainda não são autônomas. Porque o modelo não funcionaria aqui?", pergunta a assessora da ministra Pécresse.
Punição
Outro ponto que provocou insatisfação do corpo acadêmico é o novo dispositivo de avaliação dos professores. Vale lembrar que na França, todo professor universitário é também pesquisador. Com a reforma, cada professor será avaliado individualmente, segundo o número de artigos publicados em revistas especializadas.
Um professor que publica muitos artigos terá que dar menos horas-aula e aquele que não tem um número suficiente de publicações deverá lecionar mais. "Essa forma de conceber o ensino como punição é uma boa maneira de acabar com a vocação de professor”, lamenta Thamy Ayouch.
Para o jornalista Marc Endeweld, especialista no meio acadêmico, “os professores-pesquisadores já passam por avaliações constantes: quando participam de um colóquio, quando organizam uma conferência ou se candidatam a uma bolsa de pesquisa”, explica.
Outro ponto polêmico da reforma é a reestruturação anunciada do CNRS, (Conselho Nacional de Pesquisa Científica, organismo público). Com orçamento anual de três bilhões de euros (8,4 bilhões de reais), e mais de 30 mil pessoas, espalhadas em 1.260 unidades de pesquisa ligadas a diferentes universidades, o CNRS é até agora especializado na pesquisa experimental que não visa uma aplicação imediata. Desde os anos 60, sete dos seus cientistas receberam o prêmio Nobel.
“O CNRS deverá fixar a estratégia de pesquisa nacional para facilitar a parceria entre laboratórios públicos e empresas privadas”, declarou Valérie Pécresse. A associação de professores contra a reforma “Salvar a Pesquisa” considera a proposta inviável: “Na verdade, o que o governo quer é que os laboratórios de pesquisa tenham práticas empresariais como a concorrência e o lucro imediato”, critica em seu blog.
Militando em cafés e praças públicas
Durante esses três meses, alunos e professores se organizaram para sensibilizar a opinião pública, fazendo o que chamam de “greve ativa”. Cursos são ministrados em livrarias, cafés, e praças públicas. “De certa forma, estamos criando uma universidade aberta a todos", comenta o professor de etno-musicologia Nicolas Prévot, da Universidade de Nanterre. “Apesar da situação dramática de uma greve, o movimento proporcionou o encontro entre diferentes cursos, criando coesão entre professores e alunos”, completa Prévot.
Vários outros tipos de manifestação acontecem diariamente na França. A mais recente é a "ronda dos obstinados", em frente à prefeitura de Paris. Desde o começo do mês de abril, os professores se revezam dia e noite, andando em círculos. É uma adaptação dos círculos do silêncio, criados pelos freis franciscanos em sinal de apoio aos imigrantes sem visto, os chamados “sans-papiers”. As rondas universitárias podem ser vistas pela internet ao vivo. Outras cidades francesas copiaram a manifestação.
Um “concerto” de panelas foi organizado em frente ao Panthéon, onde estão enterrados Voltaire, Rousseau, Victor Hugo, Emile Zola, Alexandre Dumas, a fim de “acordar os grandes espíritos franceses”. Veja o vídeo.
Professores e alunos já prometeram que mesmo com o retorno das aulas, a mobilização continua. “Os manifestantes estão determinados a não aceitar a reforma. O problema é que governo ainda não entendeu a força do movimento”, explica o professor Ayouch. Mas no momento, professores e alunos devem ganhar uma outra batalha: a luta contra o tempo para não perderem o ano letivo, que termina em junho.
A internet teve papel fundamental na mobilização. Todas as informações sobre leis e atos públicos são divulgados em diversos blogs.
Opera Mundi
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